Alagoas - Ecossistema Musical - Cultura - Sobre o Banco
Alagoas
Os primeiros e poucos registros de compositores alagoanos datam de meados do século XIX, com Misael Domingues e Benedito da Silva. O primeiro, engenheiro e pianista, compositor de quase 90 obras de relevância para o estado; e o segundo, marcado na história por ter composto o hino de Alagoas. Influenciada pelos sons africanos, especialmente com uso de instrumentos percussivos, a música alagoana, assim como a de todo o país, criou seus primeiros ritmos originais utilizando-se de instrumentos criados com elementos da natureza. De Heckel Tavares a Hermeto Pascoal, muitos são os nomes alagoanos que se destacaram e se destacam na música brasileira.
Falar da música produzida em Alagoas é reconhecer um cenário cultural rico e uma cena musical diversa. É vislumbrar as trajetórias de artistas populares que enxergaram na arte um lugar para si, criando a partir de seus universos modos de expressão únicos e extraordinários. É perceber uma cena contemporânea que reconhece sua ancestralidade e se inspira no repertório estético das culturas populares, atualizando seus timbres e ritmos. Uma tradição que também não aparece como um “peso”, que incentiva uma busca por um horizonte vanguardista, da música cosmopolita e universalista. Tudo isso sem deixar de apresentar uma reflexão sobre o que somos, sobre a nossa identidade.
Muito mais que apenas sinalizar e legitimar artistas que já tem evidência ou reconhecimento dentro ou fora de Alagoas, buscamos apontar nomes com menos projeção ou que surgiram há pouco no cenário local – principalmente mulheres, pretos, indígenas, representantes da comunidade LGBTQIA+, e os que vivem fora da capital e da região metropolitana – tentando fazer dessas listas muito mais do que predileções pessoais, ou confirmações de privilégios, mas, sim, um lugar de boas descobertas musicais.
Em Alagoas, é possível dizer que estamos vivendo um momento de ebulição criativa, ainda muito marcado pelo impulso que a Lei Aldir Blanc, edital emergencial de fomento à cultura, deu para artistas locais viabilizarem produções durante o período pandêmico. Muitos artistas listados aqui foram contemplados e financiados com esses recursos. O que chama a atenção não apenas para um cenário cultural com bastante potencial, mas também para a carência de políticas públicas efetivas sintonizadas com os benefícios que uma distribuição de recursos que leve em consideração aspectos de raça, classe, gênero, sexualidade e também geopolíticos traz para o estado.
Lili Buarque
Nando Magalhães
Discos
Ritmo Explosivo é um registro do período áureo de Jacinto Silva, marcado na história como um dos primeiros LPs de artistas nordestinos lançados por uma major. Suas letras retratam as sociabilidades do universo do Coco de roda, a nostalgia e a saudade de suas vivências nos interiores. Expressa uma sabedoria característica, que faz o uso metafórico de aspectos da vida e do trabalho do campo para falar dos sentimentos e questões humanas amplas e universais.
Em “Zabumbê-Bum-Á” é possível ter uma amostra do que Hermeto Pascoal quer dizer com “música universal”. Sons da natureza se misturam com o jazz e a música nordestina em um disco permeado de melodias delicadas e uma rica paleta rítmica. Na faixa de abertura, “São Jorge”, ouvimos Hermeto falando sobre o cavalo Faísca e a música parece acompanhar o galope de um cavalo, cada vez mais rápido. “E eu boto a carga e vou para toda terra que quero, e eu não vendo ele barato não, só vendo caro”. Hermeto sempre foi genial.
Artista popular famoso por uma performance explosiva e uma presença de palco inesquecível, Tororó do Rojão deixou um legado de forrós criativos e bem-humorados. Sua personalidade carismática e divertida foi registrada do documentário “Tororó”, do diretor alagoano Celso Brandão. Em “Segura Menino”, especificamente, temos sua obra mais diversa, trazendo tanto composições engraçadas e espirituosas, quanto canções melodramáticas sobre amores perdidos, transitando por vários ritmos, do xaxado, ao maxixe, do xote ao coco de roda.
"Samurai", "Pétala", "Açaí", "Sina", "Esfinge", "Capim", "Luz"... A lista de sucessos que marcariam para sempre a carreira de Djavan estão no repertório do incrível “Luz”, lançado em 1982. É um disco que mostra o cantor e compositor alagoano em grande fase e coloca Djavan junto ao primeiro time da música popular brasileira. Como se não fosse o suficiente, o álbum, gravado em Los Angeles, ainda conta com a participação de Stevie Wonder tocando gaita em “Samurai”.
“Lagoa da Canoa, Município de Arapiraca” estampa em seu título o principal objetivo de Hermeto Pascoal nesse álbum: revisitar suas origens, recordar memórias infantis de um tempo e de lugares que o construíram artisticamente. De um tempo em que Lagoa da Canoa ainda fazia parte de Arapiraca, quando ele frequentava a feira-livre da cidade e conhecia a multiplicidade e a diversidade das culturas populares que povoavam aquele universo. Convergindo passagens de jazz vanguardistas, com ritmos nordestinos e samples de conversas e narradores esportivos brasileiros, esta é uma obra compõe uma paisagem sonora singular e, diga-se de passagem, tipicamente nordestina.
Após uma longa carreira de pequenos shows a apresentações em circos pelos interiores do Brasil, em 1985, a “Rainha do Forró” lançou seu décimo disco e estourou nas paradas de sucesso. “Prenda o Tadeu”, rendeu para Clemilda seu primeiro disco de ouro e diversas apresentações nos principais programas de televisão da época. A partir de então, seu forró “pé de serra”, com composições bem humoradas e caracterizadas principalmente pelo sentido duplo de suas letras (de tom jocoso-malicioso), passaram a ser amplamente conhecidas em sua época, tornando-se uma espécie de presença indubitável das noites de São João deste então.
O rock de Alagoas sempre vai passar pela Mopho. Em uma época que o Nordeste processava os efeitos do Manguebeat, ainda ali no começo dos anos 2000, a Mopho lança o que muitos consideram um dos álbuns essenciais para se compreender a psicodelia brasileira. A sofisticação dos arranjos e as múltiplas camadas sonoras que remetem a Beatles e Mutantes, ótimas letras e a incrível guitarra de João Paulo, que mostra que além de grande compositor é um estudioso do rock dos anos 60 e 70. “Nada Vai Mudar”, “A Geladeira”, “Não Mande Flores”, “A Carta” e “Uma Leitura Mineral Incrível” são verdadeiros clássicos e poderiam figurar facilmente em qualquer lista de melhores discos do rock nacional.
O primeiro álbum de Wado inaugura um momento para a música alternativa em Alagoas. Primeiro por colocar o estado no mapa de um circuito independente que nascia em paralelo à “crise” das grandes gravadoras e que começava a formar um movimento muito interessante de surgimento de festivais. Wado traz o samba, o rock e um certo tropicalismo que encontra porto no violão de Alvinho Cabral, parte fundamental da sonoridade do “Manifesto da Arte Periférica”, para levantar uma bandeira de terceiro mundo, uma temática recorrente em sua obra posterior. “Alagou As”, “Uma Raiz Uma Flor” e “Beijou Você” são canções fundamentais na obra de Wado e as versões presentes no seu álbum de estreia são retratos de uma cena musical que se consolidava em Alagoas, com Mopho e Sonic Jr.
O reggae de Alagoas sempre foi muito forte, mas no início dos anos 2000 parece ter vivido uma época mágica. DJs e bandas marcaram forte presença nas festas e rádios comunitárias da cidade de Maceió. Luana do Reggae, sem dúvida, foi um dos maiores expoentes locais do gênero e muito disso tem a ver com o lançamento de “Te Amo Demais”. A sequência de abertura com “Ainda Te Amo Demais”, “Não Dá Mais” e “Argentina” é prova da capacidade de Luana e de sua banda em criar canções com refrões capazes de marcar uma geração. Além do disco, vale conferir o sensível documentário “Ainda Te Amo Demais”, dirigido por Flávia Correia, que conta parte da história de Luana e do reggae de Alagoas.
O primeiro álbum de estúdio de Kara Veia renovou o forró de vaquejada no Nordeste. Apesar de ter sido gravado em um momento em que o artista já possuía alguma projeção em shows e vaquejadas, foi só através da reunião das músicas de maior sucesso de seu repertório no álbum que sua carreira foi efetivamente alavancada. Trazendo toadas tradicionais, mas com arranjo veloz e intenso do forró, e um romantismo dramático, Kara Veia se tornou um ícone da música nordestina. Apesar da interrupção trágica de sua vida ainda em 2004, recentemente suas músicas vem sendo revisitadas e homenageadas por artistas que estão no centro dos holofotes, como João Gomes, Zé Vaqueiro e Tarcísio do Acordeon, o que tem ampliado sua audiência nas plataformas digitais.
Sonic Junior é a “banda de um homem só” de Alagoas. Juninho Duarte começou sua carreira como membro da extinta banda Living In The Shit, mas alçou voos mais altos com o seu trabalho solo. Em “Pra Fazer O Mundo Girar”, Duarte abraça a linguagem da música eletrônica trazendo outras texturas e elementos percussivos “orgânicos”. Existe um diálogo entre ritmos percussivos e sonoridades nordestinas com o dub, o ragga, o drum & bass e dance.
Fernando Melo é um artista autodidata arapiraquense que ficou conhecido por seu trabalho no Duofel. “Alagoas em Trilogia” é um retorno às ruas raízes e vivências musicais que o formaram artisticamente. “Forró de Violão” fala de sua infância no ambiente interiorano e de suas relações familiares. “Tocador” fala dos universos populares que o inspiraram ao longo da vida. “Da Lagoa pro Mar do Mar Pra Lagoa” é um álbum sobre sua partida e retorno, sobre o mundo que viveu fora, de suas influências mais contemporâneas, mas, composto e gravado em seu retorno, em parceria com músicos alagoanos. Por isso, é o mais plural da trilogia, com composições mais heterogêneas, incorporando aspectos, timbres e instrumentos do jazz, do choro, do forró e do rock.
Segundo disco de estúdio de José Prudente, o “Chau do Pife”, artista popular que aprendeu a tocar o pífano na infância para espantar os pássaros que atacavam a lavoura de seu pai em Boca da Mata e que hoje é Patrimônio Vivo da Cultura Alagoana. Financiado através do projeto Toque e Trocas com apoio da Petrobrás, o álbum traz duas interpretações instrumentais de clássicos do forró nordestino e diversas músicas autorais de Chau, algumas delas inclusive feitas para a trilha sonora do documentário “Imagem Peninsular de Lêdo Ivo”, do diretor Werner Salles Bagetti.
Um dos poucos registros de estúdio dos mestres e mestras das culturas populares do interior de Alagoas. “Cantos do Trabalho” foi realizado através da Coleção Memória Musical, do SESC, com o intuito de difundir a produção regional de tradição oral do Brasil. Os versos tradicionais do coco de roda alagoano evocam o cotidiano dos trabalhadores e trabalhadoras do campo no interior. Esse registro guarda, entretanto, a singularidade de trupés que foram gravados em um palco teatral, o que acaba por trazer mais nitidez e profundidade ao característico ritmo sincopado. Mestre Nelson foi mestre de coco de roda, poeta popular, embolador que recebeu o título Patrimônio Vivo da Cultura Alagoana.
Nelson da Rabeca é um músico e luthier autodidata de Joaquim Gomes (AL). De modo experimental, projetou e concebeu rabecas de uma riqueza timbrística singular, fato que foi identificada por diversos músicos e pesquisadores. Por sua originalidade e habilidade ancestral, recebeu o título de Patrimônio Vivo de Alagoas. Em “Segredo das Árvores”, junto de Dona Benedita, percussionista e cantora, tocam baiões, xotes, marchas e forrós pé-de-serra que são definitivamente ímpares, conduzidos pelos sons nostálgicos e viscerais de sua rabeca.
Uma joia da música alagoana, sem dúvida. O que a banda Gato Zarolho fez no início dos anos 2000 em Maceió foi descolar a cena musical da cidade de uma herança do manguebeat e de uma fórmula que parecia batida de misturar rock com ritmos populares. Em “Olho Nu Fitando Átomo” temos uma mistura de uma roupagem básica do rock (guitarra, baixo e bateria) dialogando com instrumentos populares (flauta, percussão e violão de nylon). A complexidade harmônica e rítmica serve de base para a poesia sofisticada de Marcelo Marques. “Inês É Morta”, “Samba Safado Prum Dia Triste” e “É Com Você e A Sorte” marcaram época no circuito alternativo maceioense.
Lançado em 2011, “Fall of Mesbla” foi o primeiro e último álbum do duo arapiraquense My MIDI Valentine. Gravado e totalmente produzido pelos próprios membros da banda (Marcos Cajueiro e Tales Maia), traduz bem o espírito da cena independente alagoana do período, convergindo referências icônicas do universo indie dos 90’s e 00’s com uma tonalidade lo-fi e experimental. É um álbum conceitual, profundo, complexo e, ao mesmo tempo, manifestadamente pop. A partir de uma estética 8bit nostálgica, transita entre o indie rock, o progressivo a música ambiente, eletrônica e o jazz.
“Fábula” é o terceiro disco de Cris Braun. A artista começou a carreira como vocalista da cultuada banda Sex Beatles, ainda nos anos 1990. Mas longe de ser concebida como uma artista do passado, sua carreira solo mostra que há um movimento criativo que coloca a cantora como uma das vozes mais importantes do estado (mesmo sendo gaúcha, reside em Alagoas e construiu grande parte de sua carreira em diálogo com músicos locais). Esse disco traz uma sonoridade delicada com muita presença de violões, que deixam bastante espaço para a performance vocal de Cris, o ponto mais alto do disco todo. Vale destacar as versões inspiradas de “Cidade Grande”, de Wado, e “Memória da Flor”, de Júnior Almeida.
Um dos artistas de maior destaque em Alagoas, Mácleim é produtor musical, arranjador, autor de trilhas sonoras e um compositor gravado por diversos artistas alagoanos. “Esses Poetas” é o quarto e último registro de estúdio do músico. Lapidado ao longo de mais de uma década, é um álbum duplamente importante. Tanto por ser uma obra madura, apurada em sua produção, quanto por reunir uma plêiade do cenário artístico alagoano, seja através da diversidade das participações presentes, seja pela distinta escolha realizada de poetisas e poetas musicados: Arriete Vilela, Ledo Ivo, Jorge de Lima, José Geraldo, Edvaldo Damião, Jorge Cooper, Gonzaga Leão, Maurício Macedo, Sidney Wanderley, Diógenes Junior, Otávio Cabral, Ronaldo de Andrade e Paulo Renault.
Independente de gênero, é possível dizer que Vibrações é uma das grandes bandas de Alagoas. Em atividade há mais de duas décadas, a banda teve um auge de exposição ao participar do programa Superstar da Rede Globo. O álbum de estreia traz o reggae como fio condutor, mas também uma complexidade rítmica de herança africana e indígena. “Natureza Mãe” e “Olhos Verdes” eram presença fácil em qualquer roda de violão na primeira década dos anos 2000 em Maceió. É um disco que tem uma produção incrível e até hoje, mais de duas décadas de seu lançamento, tem faixas essenciais na carreira do Vibrações e, principalmente, da música de Alagoas.
“Negra Soul” é o primeiro trabalho da cantora alagoana Arielly Oliveira, uma das principais expoentes do rap no estado. Iniciada na música desde muito nova, Arielly encontrou no rap uma saída criativa para processar referências que passam também pelo soul e R&B, além de servir de base para um discurso de forte teor político e de empoderamento feminino. Nesse primeiro trabalho, vale dar destaque às canções “É Certo Cantar”, “Sem Silêncio” e “Negra Soul”. Essa última foi interpretada por Arielly em um encontro emocionante com o pianista Jonathan Ferr no Sala de Ensaio, live promovida pelo Festival Carambola durante o período da pandemia. O piano de Ferr deu ares eruditos e jazzísticos para uma das músicas mais marcantes desse trabalho.
O álbum de estreia da Casa da Mata consolidou a presença da música psicodélica, do blues e do rock progressivo na cena arapiraquense, deixando evidente a influência da Mopho quase duas décadas após o seu debut, e do quanto as sociabilidades do Bar do Paulo marcaram diversas gerações na cidade. A dupla de compositores e vocalistas da banda (Allan Lins e Breno Airan) asseguram um álbum rico em nuances estilísticas e líricas, de músicas simples e diretas típicas do rock brasileiro dos anos 80, até composições com longas passagens instrumentais, lembrando Rush em vários momentos.
Fernanda Guimarães é uma das grandes vozes da música de Maceió. Embora tenha feito muito da sua carreira em projetos ligados ao rock, “Pés Em Casa” é um tributo à música nordestina, ao forró pé de serra e ao estado de Alagoas. Muito mais que a versatilidade da voz de Fernanda, o disco aqui traz uma modernidade e um certa influência do jazz nos arranjos de acordeon, guitarra e bateria. Destaque para “Vou Voltar”, “Pés em Casa” e “Fitas e Coroas”.
“Por que duas rabecas tocando empareadas é bonito, é muito bonito”, fala o mestre Nelson da Rabeca. Esse disco é a materialização da amizade do “seu” Nelson com o músico suíço Thomas Rohrer. Aqui, a sofisticação da rabeca do mestre flerta com o improviso do jazz, a erudição da música clássica e os saberes da música popular. As participações de Dona Benedita dão um colorido especial para o disco em momentos de rara beleza como em “As Andorinhas” e “Rabequiê / Pense Meu Filho”. O disco é permeado com falas (que poderiam ser ensinamentos) do mestre Nelson dando uma sensação de que esse encontro registrado é também perpetuação de saberes.
Tequilla Bomb é um trio já conhecido na cena musical de Maceió. Aqui o soundsystem do Tequilla sintoniza e remixa gêneros latino-americanos, caribenhos e jamaicanos com um forte sotaque nordestino. As ótimas “Deus me deu armas”, “Funk como me gusta” e “Manifesto Bomb” são exemplos de como o trio consegue unir um discurso político com tom de denúncia social em uma sonoridade festiva. Olhando hoje, 2018 parece ser um ano longínquo, mas o levante do ultraconservadorismo, crises econômicas e sociais, bem como, o poder das redes sociais foram temas tratados nesse disco. Merece ser revisitado.
Quatro anos após o seu debut, Ítallo França apresenta um álbum conceitual, centrado nas sociabilidades do futebol de rua suburbano. Um imaginário profundamente plural que ele faz questão de exibir em sua faixa de abertura, um universo popular, misturado, carregado de ritmos e diversidade. A MPB, o samba, o funk brasileiro. Composições modernas inspiradas na música de Jorge Ben, Gilberto Gil e Moraes Moreira, soando muitas vezes contemporaneamente brasileiro como Curumin. Tudo isso se condensa em uma obra repleta de saudade, de uma infância e adolescência vivenciada com intensidade no interior de Alagoas.
“Presença” é o novo projeto da cantora alagoana Andréa Laís e merece um destaque dentre os lançamentos locais recentes. O primeiro ponto diz respeito ao cuidado com o conceito do disco que pode ser percebido tanto no álbum musical em si, como também em um belo álbum visual gravado no interior do estado. É uma obra que tem um forte apelo da temática Nordeste, mas a abordagem se faz por meio de uma sonoridade e linguagem bastante moderna. Musicalmente, chama a atenção tanto o vozeirão de Andréa Laís quanto os graves dos sintetizadores em faixas como “Presença”, “Praia da Paciência” e “O Futuro é Agora”. Vale a pena ver no YouTube.
“Lembra do Dja? Eu vim de lá também”. Boby CH, rapper do bairro do Jacintinho em Maceió, canta em “Vou lá”. Em 2021, ele lançou, como parte de um projeto contemplado pela lei Aldir Blanc, uma das melhores lives do período pandêmico em Alagoas. Com uma sonoridade muito fincada na cultura soundsystem, no reggae e no hip hop, Boby CH fala sobre a cidade de Maceió - tanto sobre as belezas naturais e o clima (como em “Muitxo Calor 3.0” e “Massayo”), quanto a vida em bairros periféricos (como em "Melô de Jaçaman” e “No Gueto Remix”). Destaque também para as colaborações com Maju Shanii, em “Vem sentir”, e Luiz de Assis, em “Estiga Perifa”.
“Maracatu de Ouro” é um registro de um dos coletivos de maracatu mais importantes de Alagoas. O Afrocaeté é resistência em Maceió há muitos anos, ainda mais em uma cidade que tem histórico de intolerância com religião e manifestações culturais de matriz africana. Sua sede, que se localizava no bairro de Jaraguá, era ponto muito frequentado por parte da juventude anos atrás. O disco traz lindas participações de Chau do Pife e Manu Preta. Em 2022, tivemos um cortejo do Afrocaeté no Festival Carambola e foi um dos momentos mais bonitos dessa edição.
LoreB é um dos ótimos nomes de uma nova cena musical em Maceió do início da década de 2020. Após o lançamento de seu EP de estreia, “Etéreo” (2019), a artista parece ter investido ainda mais em uma sonoridade lo-fi que se constrói em cima de beats eletrônicos cadenciados. Em “Cheio de Vazio”, seu trabalho mais recente, a sua voz delicada encontra cama em sintetizadores, pianos elétricos e bastante reverb. As parcerias com Huná (em “Vazio Moral 2.0”), Cris Braun e Fernando Nunes (em “Se Fosse Normal Ser Louco”) trazem um colorido especial para o disco.
O EP comemora os 25 anos de existência da banda que revitalizou determinantemente a cena psicodélica brasileira. “Que Fim Levou Meu Sorriso” revela que a Mopho continua recriando e reimaginando a música nascida no Brasil dos anos 70. Com arranjos e timbres fortemente influenciados por Mutantes e Pink Floyd, somos mergulhados em uma atmosfera de uma lisergia que é triste, nostálgica e estranhamente tranquilizante. É uma obra que apesar de possuir uma inspiração “vintage” possui um frescor singular, uma originalidade que a banda carrega desde o seu início. Além disso, desta comemoração participam também Júnior Bocão (baixo e voz) e Hélio Pisca (bateria), ambos membros fundadores da banda que retornaram ao grupo em 2019.
“A Distância Entre as Cidades” é um álbum difícil de definir. Entretanto, o nome da banda pode nos dar pistas sobre as principais inspirações do projeto. Quando ouvimos o EP, de fato, nos lembramos de muita coisa que ouvimos nas diversas coletâneas que carregam essa alcunha: a música pop dos anos 70 e 80, o apelo melodramático, os timbres. Mas, as referências vão muito além. A música popular brasileira dessas décadas, seu flerte com a bossa-nova e com o rock psicodélico, sons que curiosamente dialogam muito com a estética criativa de Guilherme Arantes, por exemplo. O jazz latino protagonizado pelas guitarras, o jazz-fusion com elementos de post-rock da banda norte-americana Karate, e até a mistura fluída de vocais obscuros, delays e reverbs do shoegaze do Slowdive. De alguma forma, tudo isso salta aos nossos ouvidos, de uma maneira coesa e pop.
“Bata Cabeça” irradia o frescor de toda uma geração. Não à toa, é o disco realizado pela pessoa mais jovem dessa lista. Através de rimas e cantos ritmados por atabaques, pandeiros e beats de boombap, traz à tona questões e (auto)descobertas que estão cada vez mais presentes em nossa produção artística. Naty Barros conduz uma série de reflexões sobre identidade alagoana e luta política, fortemente sustentada por afirmações de negritude, da resistência quilombola e dos símbolos afro-religiosos, sem, entretanto, deixar de lado um repertório imagético sobre a agrestinidade, seu sotaque, as culturas populares e suas expressões.
Embora seja tratado como uma novidade por grande parte da mídia especializada e do circuito independente nacional, Bruno Berle já tem uma longa trajetória na música em Alagoas. Além do projeto solo, iniciado em 2014, com o belo “Arapiraca Maceió 2013“, Berle já marcava presença na cena com a Troco em Bala e The Mozões. Em “No Reino dos Afetos”, disco lançado pelo selo inglês Far Out, o compositor aposta em uma brasilidade lo-fi delicada bastante perceptível em faixas como “Quero Dizer”, “Guardo em Tuas Mãos” e “O Nome do Meu Amor”. Um disco que traz bonitas canções trabalhadas quase que artesanalmente e que refletem a versatilidade do artista que é Bruno Berle.
Mary Alves começou a carreira este ano com o lindo “Amor Preto Cura” e já desponta como uma das artistas a se acompanhar em Alagoas nos próximos anos. Nas quatro faixas que compõem seu EP de estreia, Mary passeia pelo samba, rap, rock e soul ao mesmo tempo que traz a linguagem rítmica do coco e do maracatu alagoanos. Logo de cara, em “A água do mar” temos uma amostra dessa fusão. Mary canta a sua herança africana com muitas menções a diáspora africana, à religião e ao histórico do enfrentamento negro no estado, marcado pela luta do Quilombo dos Palmares, Zumbi e Dandara.
NSC - Neurônios Sub-Consciente é o grupo de rap com maior influência e audiência em Alagoas. A coleção de álbuns denominada “Clássicos” (até agora com três volumes) reúne as composições de maior sucesso do grupo em seus mais de 15 anos de atividade, um esforço de sistematização e organização de uma produção artística que muitas vezes esteve dispersa em singles lançados apenas no Youtube. O Vol. 01 agrupa as músicas da primeira fase do grupo, do gangsta rap com sotaque alagoano que traduz com destreza questões complexas e profundas para uma linguagem direta e enraizada nas grotas e periferias das cidades.
Como o nome evidencia, “Am pros pés” é um disco conceitual em diversos sentidos. Primeiramente por ter um formato fechado, coeso, de músicas e depoimentos interligados pela mimetização de um programa de rádio fictício. Mas, para além de seu formato, ele tem também uma intenção muito clara, uma dinâmica quase pedagógica, de apresentar e preservar o Coco de Roda em sua expressão mais tradicional, ou seja, em suas métricas, em sua poesia e na aplicação dos trupés. Faz isso sem deixar ser contemporâneo, dialogando com vertentes mais modernas da música popular, um projeto estético iniciado por pelo “Mestre Bozo” ainda em sua época à frente da banda “Poeira Nordestina”, mas que agora aparece mais claramente como um projeto coletivo, de participações e conexões artísticas que são múltiplas e que seguem muito além da gravação do álbum em si, que tem mobilizado uma série de ações de revitalização do ritmo alagoano.
“Miolo do Oxente” é, provavelmente, o álbum que melhor realiza uma convergência entre duas heranças fundamentais da música arapiraquense: o universo das culturas populares em suas perspectivas tradicionais e contemporâneas e o rock setentista psicodélico que tanto marcou a vida urbana da cidade – ainda que com timbres mais contemporâneos e com toques de synth-pop. Todo o disco está atravessado pelos beats e pelas estéticas que transbordam do universo popular e periférico da cidade: do piseiro ao brega-funk, sem deixar de fazer reverência à cultura popular tradicional, posição que já ensaiava em trabalhos anteriores, mas que em 2022 parece ter encontrado seu formato definitivo.
Em seu segundo álbum de estúdio a Gato Negro apresenta uma obra sólida e madura. Definitivamente pop, mas com apuro, sem faltas ou excessos. Reunindo tanto canções novas, quanto músicas que já faziam parte do repertório de shows de pelo menos uma década atrás - mas que nunca haviam sido registradas - “Mestiço” é um álbum que consolida o desenvolvimento artístico da banda. Aprofunda sua exploração pelas complexidades melódicas e vocais fortemente influenciadas por Djavan e pela música negra brasileira setentista e atesta o entrosamento instrumental enérgico do trio arapiraquense - tudo isso com uma produção e timbres marcadamente contemporâneos.
Lili Buarque
Nando Magalhães
Arapiraquense, 34 anos, graduado em Psicologia (UFAL), mestrado em Sociologia (PPGS/UFAL) e doutorando em Sociologia (PPGS/UFPE). Pesquisador de políticas culturais, músico, compositor e produtor cultural. É membro fundador da Associação Cultural Popfuzz e do selo editorial Trajes Lunares. Fez parte do Conselho Nacional de Política Cultural e do Conselho Municipal de Políticas Culturais de Maceió. Idealizador e produtor de uma série de projetos culturais, entre festivais de música, mostras audiovisuais e exposições artísticas.